terça-feira, 20 de julho de 2021

O "vixe" onde eu cresci

No post que falei da minha participação no hackathon social que houve no Bom Jardim em 2019 eu mencionei que morava no "vixe". Hoje vou explicar o que é esse "vixe" e como ele afeta as pessoas que, como eu, cresceram aqui e vivem aqui.

Pintura que fiz do Bom Jardim para o jornal O Povo, em 1994. A foto é de 2013.

"Vixe, doce "vixe"

Tirando os cinco anos que passei no interior próximo, posso dizer que cresci no Bom Jardim, onde estou morando mais uma vez enquanto escrevo este texto. Foi aqui também onde tive intensa participação em movimentos sociais e aprendi muito com essas experiências.

Bom Jardim é um bairro da periferia de Fortaleza, capital do Ceará.  Além do bairro em si, o nome abrange uma região composta também pelos bairros Siqueira, Canindezinho, Granja Portugal e Granja Lisboa, uma região cuja identidade e integração cultural foi formada pelos movimentos sociais, especialmente o movimento de Comunidades Eclesiais de Base - CEBs, da Igreja Católica, que teve forte atuação na região nos anos 1980 e 1990. 

Avenida Oscar Araripe, a principal do Bom Jardim. Imagem recente, captada do Google Street View


Apesar das mudanças atualmente em curso causadas pela reorganização administrativa da cidade e pela própria mudança de visão territorial das pessoas, ainda é forte o conceito identitário de Grande Bom Jardim, de modo que quem mora em um dos bairros que formam a região é tido simplesmente como morador do Bom Jardim. Ou seja, mora no “vixe”.

Aqui no Ceará e em parte do Nordeste nós usamos uma interjeição de espanto bem peculiar nossa, o “vixe”, que vem lá do português antigo e era uma expressão oriunda da fé religiosa católica, o “Virgem Nossa Senhora” ou “pela Virgem Maria”, que com o tempo foi reduzida para “virgem” e por fim, chegou no nosso “vixe”. É uma interjeição muito usada quando alguém se refere a alguma coisa estranha, assustadora ou que represente perigo. Como os bairros da periferia de Fortaleza são, de forma estigmatizada, considerados perigosos, quando alguém diz "moro em tal bairro" o outro fala "vixe!". O diálogo começou assim:

— Onde você mora?
— No Bom Jardim.
— Vixe!

Com o passar do tempo, talvez numa tentativa de aliviar o tom depreciativo, ficou assim, meio que uma brincadeira:

— Você mora em que bairro?
— Lá no Vixe.

Essa imagem estigmatizada não existe apenas na cabeça de quem está do lado de fora. Ela está fortemente presente na cabeça de quem mora no bairro, de quem cresceu nele, uma sensação de inferioridade e indignidade comum entre quem nasce e vive nas tantas periferias do Brasil.

O Bom Jardim, no entanto, tem uma peculiaridade geográfica. Se você está em outra parte de Fortaleza e vem ao bairro, quase que invariavelmente terá que passar pela ponte, a Ponte do Bom Jardim. Se você sai do Bom Jardim para ir a outra parte da cidade, passará pela ponte. A ponte é portanto uma espécie de portal de acesso ao barro.

A ponte do Bom Jardim em imagem do Google Street View

Com o tempo e a experiência de anos atuando no social aqui na região, percebi que existe uma espécie de ponte imaginária no inconsciente das pessoas que vivem aqui. É aquela sensação de que os lugares além da ponte, sobretudo os lugares "dos ricos" "não são pra mim".

Foi esse estigma que eu propus atacar com a ideia que apresentei no hackathon. A ideia não foi aprovada, mas sigo com o pensamento de transformar a metáfora da ponte em um futuro projeto que ajudar as pessoas daqui e das periferias em geral a "cruzar suas pontes" e saírem de vez do "vixe".

Estou aberto a sugestões e parcerias.

Elinaudo Barbosa

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