Elinaudo Barbosa   2 comentários

Meu pai teve covid-19, mas morreu foi pelo descaso mesmo!

Seu Leonardo Ferreira, meu pai, partiu no último dia 27. Internado com dificuldades para respirar, foi intubado no dia 16 e passou 10 dias aguardando por uma UTI enquanto o governador do Ceará, Camilo Santana, anunciava constantemente o aumento da quantidade de leitos e o noticiário dava conta de que a taxa de ocupação era alta, mas nunca de cem por cento.

Quase 10 por cento dos leitos desocupados e meu pai 10 dias intubado aguardando por UTI

Em fevereiro, período em que meu pai esteve internado, cresceu bastante a quantidade de casos de covid e a demanda por leitos obviamente aumentou, mas mesmo assim, em momento algum foi dito ou noticiado que não havia UTI disponível. A ocupação chegou a mais de 90 por cento nos últimos dias, mas nunca chegou, segundo noticias e dados oficiais, a cem por cento. Se as UTIs não estavam cem por cento ocupadas, por que meu pai não foi colocado em uma delas? Foi a pergunta que fiz nesse post, quando ele estava há nove dias esperando e é a pergunta que continuo fazendo agora, enquanto sinto a dor da perda e a falta de um pai que sempre foi exemplo de determinação e amor pela vida e por estar vivo. E que em dezembro último estava feliz e disposto, contando suas histórias de vida e seus causos na passagem do 94° aniversário.

Meu pai teve covid-19, mas morreu foi pelo descaso mesmo!

Pra começar, transferiram um idoso de 94 anos, com insuficiência cardíaca e hipertenso, para um hospital sem leitos de UTI destinados ao tratamento de covid. Ele foi internado inicialmente na UPA do Bom Jardim, no dia 12/2, com diagnóstico comprovado da doença, e lá ficou por 2 dias. No dia 14/2 foi transferido para o Hospital da Mulher. Chegando lá teve piora da parte respiratória e, dois dias depois, em 16/2, foi intubado. No boletim médico foi informado que ele iria precisar ser transferido para UTI a partir da intubação. Ou seja, no dia 16 ele já devia ir para a terapia intensiva.

Uma semana inteira se passou e nada de uma UTI para o meu pai! Após dias de dolorosa espera, recorremos à via judicial com a esperança de que a situação fosse resolvida antes do pior. Mas até para dar entrada na petição tivemos que passar pela demora perpetrada pelo hospital. Para que fosse feita uma petição era necessário um laudo médico indicando a necessidade de UTI. Foi preciso que a Defensoria Pública do Estado oficiasse o hospital para que eles se dessem ao trabalho de emiti-lo! Com mais um dia de espera causada pela demora na emissão do laudo, foi feita uma petição à Justiça, que expediu liminar determinando imediata transferência do meu pai para uma UTI.

Além de recorrer à Justiça, escrevi uma carta relatando o caso, que foi encaminhada para jornalistas e veículos de imprensa. E passei a relatar o caso também em minhas redes sociais.

Matéria do jornalista Demitri Túlio, no jornal O Povo, falando da longa espera do meu pai por uma UTI

Nem com ordem judicial meu pai teve prioridade

Mesmo com a liminar determinando transferência imediata, mesmo com o caso já ganhando destaque na imprensa local, ainda assim, continuaram enrolando e só quando já tínhamos entrado com recurso acusando descumprimento da liminar, nos foi informado que ele iria para uma UTI no próprio Hospital da Mulher. Ainda assim, com informações desencontradas, onde o serviço social dizia que ele fora transferido e o médico dizia que não sabia da transferência. Isso some-se ao fato de o hospital ter nos informado antes que lá não havia UTI para tratamento de covid.

No início da manhã do dia 27/2 chegou uma ligação do hospital me dizendo para ir lá com documentos dele. Após quase 11 dias de espera e descaso, meu pai havia morrido naquela madrugada. 

Havia poucos leitos, mas havia

Quem acompanha as notícias sabe que nos últimos dias a demanda por leitos aumentou muito e também a taxa de ocupação, porém essa taxa nunca chegou a cem por cento. E meu pai só precisava de um, APENAS UM para continuar lutando pela vida! Mas esse um foi sistematicamente negado ao longo de 10 longos dias de sofrida espera. Olha o que dizem as notícias no intervalo em que ele ficou intubado aguardando por um leito:

Reportagens da TV Verdes Mares (Globo local) mostra ocupação elevada das UTIs no dia em que meu pai foi intubado e 6 dias depois. Havia leitos vagos! Pra quem estavam sendo reservados?

Mesmo que fossem só esses três em toda a rede estadual, meu pai só precisava de um!

Além de não chegar a cem por cento de ocupação, no mesmo período, o governador Camilo Santana anunciou mais de uma vez a abertura de novos leitos através de seus pronunciamentos nas redes sociais.

Em sua página no Facebook, Camilo Santana, Governador do CE, anuncia 32 leitos novos no dia em que meu pai precisou de UTI e mais 20 quando meu pai já estava há DEZ DIAS ESPERANDO POR APENAS UM!

Enquanto o governador colecionava elogios em suas redes sociais, nos bastidores, longe dos holofotes, meu pai caminhava para a morte, isolado do mundo em uma enfermaria do Hospital da Mulher.

Perguntas que até agora não foram respondidas

Se ainda havia leito, mesmo que um ou dois, por que meu pai não foi para um deles? Pra quem esses leitos são reservados? Por que o Estatudo do Idoso foi desrespeitado e meu pai parece ter sido mesmo deixado para morrer?

Eu quero respostas a essas perguntas! Minha família também! E vamos continuar batendo nessa tecla até que essas perguntas sejam respondidas!

Que outros casos assim não aconteçam!

Além de esperar obter respostas para minhas perguntas, espero com esse relato poder contribuir para que outros idosos e suas famílias não tenham que passar pelo que nós passamos. Não podemos aceitar que idosos, apenas por serem idosos, sejam negligenciados e deixados para morrer. Não interessa a idade e nem mesmo o quadro de saúde, todo idoso deve ser tratado com prioridade.  É lei! E é dever dos entes públicos de todas as instâncias garantir que a lei seja cumprida.

Um homem que adorava viver e lutou pela vida até o fim

Meu pai costumava dizer que teve uma boa vida. Órfão de pai ainda criança, batalhou muito e se fez do nada, foi um verdadeiro self made man. Adorava contar suas histórias de superação e repetir as frases do avô que tanto admirava. Uma dessas frases era: "O que a gente tem de bom é a vida, vamos zelar por ela."

Parte da indignação que eu e minha família sentimos é por saber que meu pai, se tivesse tido o tratamento e a atenção devidos poderia ter superado a covid e voltado pra casa com mais uma história pra contar. Ele era idoso, tinha complicações cardíacas, mas vivia muito bem. Era alegre, disposto, ainda caminhava, mesmo devagar e se cuidava praticamente sozinho. Era um lutador e mesmo sob todo o descaso sofrido ainda lutou por quatorze dias, alcançando uma marca que muitos pacientes mais jovens não conseguiram alcançar mesmo tendo uma UTI.

O sorriso de quem sempre amou viver! Meu painho agora está contando suas histórias e causos num lugar bem melhor que aqui.

Vá em paz, meu pai. Agora o senhor tem um Universo inteiro para ouvir suas histórias!

Elinaudo Barbosa