sábado, 30 de janeiro de 2021

Da lamparina ao computador: meu sonho de ser quadrinista

Hoje é Dia do Quadrinho Nacional, data criada para dar visibilidade à nona arte brasileira. Este ano, que não tem nenhum lançamento da EB Comics para a data, vou aproveitar o ensejo para contar como entrei nessa história, começando lá pelos sete anos, quando vi quadrinhos pela primeira vez e pouco depois já dava os primeiros passos para me tornar um quadrinista, até chegar no atual Universo EB de Super-heróis.

Esboço a lápis do primeiro quadrinho da Brasiliana e sua verão final, desenhada e colorida digitalmente.

Só fazem cinco anos que lancei minha primeira história em quadrinhos, da personagem Gata Púrpura, mas o sonho de ser autor de quadrinhos vem desde a infância. Lá pelos seis, sete anos de idade, período em que eu vivia na nossa casa do interior, eu ganhei de presente algumas revistinhas da Disney. Essa é a minha primeira lembrança de ter tido contato com quadrinhos e foi paixão à primeira lida. Nesse período eu estava aprendendo a ler e também a desenhar, estimulado pela professora que me dava aulas em casa, pois não havia escola próxima.

Além de não ter escola, também não havia luz elétrica na localidade, então eu vivia bem isolado do mundo. Meu primeiro — e único — contato com a cultura POP dos anos 1980 eram naquele momento as revistinhas Disney, que logo viraram meu refúgio intelectual e artístico particular. Eram tempos de trabalho infantil naturalizado, que começava cedinho e ia até o final do dia. De manhã eu era o menino da porteira, botava os bezerrinhos pra dentro quando meu pai ia ordenhar as vacas, e depois seguia com a lida da casa, ajudando minha mãe em diversas tarefas que incluiam cuidados da casa, animais do quintal e também ajudava com meus irmãos menores.

Já um pouco mais grandinho, aprendendo a andar de bicicleta, fiz um teste de nível e passei para a terceira série. Passei a estudar na pequena escola José de Sousa Albuquerque, em Lagoa do Juvenal, povoado que fica a quatro quilômetros de onde era a minha casa. Com a escola e os afazeres de casa, sobrava a noitinha, entre o jantar e a hora de dormir, para ler e desenhar, o que eu fazia sobre o móvel da máquina de costura Singer da minha mãe, iluminado pela pequena lamparina da sala.

Era a luz da lamparina que alumiava meus primeiros desenhos.


Nascia um sonho movido a querosene e papel reaproveitado

À medida que fui avançando na leitura e entendendo os enredos das HQs do Pato Donald, Mickey e o meu preferido de sempre, Tio Patinhas, eu passei a ter vontade de criar minhas próprias histórias. Ali surgiu o sonho de quando crescer trabalhar desenhando HQs. Em algum momento alguém me ensinou que se eu umidificasse o papel com querosene, ele ficava meio transparente e eu podia copiar os desenhos das revistinhas como se fosse um papel vegetal.

Como não tinha muito papel à minha disposição, eu recolhia os forros brancos das embalagens de farinha de milho e também das carteiras de cigarros  (ou maços, pra você que é do sul). Esticava os papéis, formava as folhinhas e, com um algodão embebido no querosene da lamparina, ia desenhando os personagens e montando eles em cenários e histórias que eu criava. Não lembro de ter finalizado nenhuma história, mas devo ter desenhado cenas suficientes para muitas. A única que ainda tenho memória tinha como enredo uma corrida de carros reunindo todos os personagens de Patópolis, que começava na cidade dos patos e terminava em algum lugar pelo mundo, lugar esse que nunca decidi, assim como também nunca estabeleci o que seria o prémio.

Nessa época eu cheguei a sonhar que quando crescesse iria desenhar pra Disney fazendo grandes histórias do Tio Patinhas e companhia. Aí, chegando nos dez anos, vim morar em Fortaleza com minha mãe e irmãos. Passei a estudar na escola Júlia Alves  —  que quando vi pela primeira vez me pareceu imensa!  —  e uma nova fase iniciou também para o futuro quadrinista, já que foi nesse período de mudança de casa que passei a ter acesso a outros quadrinhos, como Tex, Mandrake, Fantasma etc. E, claro, quando cheguei aqui, tinha a televisão, com muitos desenhos e também séries com caçadores de recompensas e suas picapes invencíveis.

A famosa picape do seriado Duro na Queda.


A era das picapes voadoras

Na escola nova me enturmei com os meninos nerds da minha sala de telensino da quinta série, dentre eles outro desenhista, que se chamava Francisco (não lembro o resto do nome dele). A gente estava no mesmo nível de desenhos e iniciamos uma parceria que ao mesmo tempo era uma concorrência, desenhando não exatamente quadrinhos, mas criando histórias com desenhos. Não sei de onde tiramos a referência, mas cada um criou uma picape tecnológica que voava, atirava mísseis, laser e o que mais a gente inventasse na hora. E a gente passava o recreio e também parte das aulas desenhando situações onde nossos protagonistas e suas caminhonetes tecnológicas disputavam que era o mais "invocado" dos dois.

A vida escolar avançou, outras coisas aconteceram e eu perdi contato com aquela primeira turminha da qual fazia parte o Francisco. O sonho de ser quadrinista da Disney foi ficando para trás e agora também se encerrava a era das picapes voadoras. Com a chegada da adolescência vieram novos quadrinhos, os dos super-heróis da  Marvel e da DC, além dos heróis do cinema americano, como o Rambo e das séries e desenhos animados, como Thunder Cats e Jaspion. Lendo todos os quadrinhos que conseguia emprestados (eu não tinha dinheiro pra comprar) e consumindo a vasta programação infanto-juvenil da TV da época, eu agora desenhava basicamente super-heróis.

Saem as picapes voadoras, entram os homens voadores

Em um concurso de desenho da escola, acabei conhecendo meu novo parceiro de desenho, o Erivando Costa, que também era fã de super-heróis e principal fornecedor de novos quadrinhos para minhas leituras, isso lá pelo começo dos anos 1990. Foi nessa época que surgiu pela primeira vez o desejo de ter um universo autoral de super-heróis, desejo esse que aumentou significativamente quando li a magistral saga Crise nas Infinitas Terras. Erivando compartilhava do mesmo sonho e logo passarmos a criar heróis e heroínas inspirados na infinidade de personagens que apareciam na saga.

Crise nas Infinitas Terras me inspirou a ter um universo de super-heróis!

Isso rendeu um universo de personagens, alguns criações minhas, outros dele e outros em co-criação. E, como não podia deixar de ser, resolvemos criar HQs do nosso agora vasto universo. Pelo menos era o que a gente queria fazer, pois na hora da prática a teoria é outra. Desenhar quadrinhos naquela época era lápis, papel, nanquim e muita paciência pra produzir histórias que, se você não tivesse muito — bem muito! — dinheiro pra montar uma editora, a única forma de levar ao público seria fazendo fanzines e distribuindo nas proximidades.

E foi essa constatação de que teria que desenhar tudo no papel, só tendo como canal de distribuição os fanzines xerocopiados, que me fez, naquele momento, desistir da ideia de ser quadrinista. Isso porque a ideia lá da infância, de trabalhar com personagens de autores consagrados, fossem da Disney ou das editoras de super-heróis, eu já havia descartado bem antes. Queria fazer se fosse o meu (ou nosso). Como vi que não dava, decidi que aquilo ali não era pra mim e fui cuidar de outros interesses e sonhos como a causa ambiental, que ocupou bons 20 anos da minha vida.

Infelizmente eu não sei aonde foram parar os desenhos dos vários heróis e vilões que desenhamos, pois só me restou o de um único personagem das dezenas que criamos.

Mas nada como uma década depois da outra, né?

Tony Stark e a tecnologia

Se foram os personagens da DC que me inspiraram a criar um universo de heróis, foram os da Marvel que me estimularam a voltar muitos anos depois. A bem da verdade eu nunca deixei de pensar na ideia de produzir quadrinhos, mas era uma coisa que passava pela cabeça e sumia enquanto eu fazia as milhares de coisas que um multipotencial inventa ao longo da vida. Isso até eu parar pra ver Homem de Ferro e o nascimento do universo Marvel nos cinemas e umas séries novas do Universo DC que apareceram na TV. Ali bateu de novo a vontade forte de criar heróis e histórias de heróis!

O avanço da tecnologia trouxe uma nova era de possibilidades para os super-heróis de todo o mundo.

A vontade bateu forte, porém eu não comecei logo de cara. Além de ter perdido as criações antigas, havia a lembrança da dificuldade que eu encontrei de desenhar em papel. E havia ainda um outro fator a considerar, que era a certeza que todo mundo tinha — e que muitos ainda tem — de que quadrinhos de heróis não dão certo no Brasil. Com tantos contras e só minha vontade a favor, fui pesquisar o que tinha de super-heróis no Brasil e como andava o mercado global para esse segmento.

Essa pesquisa me trouxe resultados que me animaram a retomar meu antigo sonho. Primeiro, percebi que dentre os inúmeros autores do gênero no Brasil, há alguns com chances de irem além das HQs ocasionais. Segundo, que no cenário global o gênero super-herói estava em franco crescimento, puxado pelo cinema e pelas séries de TV. E por fim, a mais animadora de todas: havia tecnologia disponível tanto para produzir os quadrinhos — até programas específicos para criar HQs — e a internet tornara possível distribuir pra qualquer lugar do mundo.

Resolvi meter a cara!

Um novo universo para um velho sonho

Era preciso, porém, criar novos personagens, já que os antigos tinham desaparecido por obra de algum vilão do esquecimento. No final de 2014 comecei a conceber mentalmente o novo universo, que em 2015 foi se materializando aos poucos através dos primeiros desenhos. Em outubro daquele ano finalmente criei corarem e fui desenhar a primeira HQ! Ainda desenhando em papel e digitalizando numa multifuncional emprestada (nos tempos atuais quase ninguém mais tem scanner), virei noites conciliando meus outros trabalhos com a produção da primeira história da Gata Púrpura, que lancei na madrugada de 13 de novembro, uma lua nova, pra ser um lançamento bem auspicioso.

E foi! Rendeu até matérias em sites e blogs locais.

O primeiro quadrinho que desenhei para o Universo EB é uma homenagem ao estilo dos quadrinhos Disney que me inspiraram lá na infância a ser um quadrinista.


De lá pra cá, com a demora natural de quem faz algo ainda por hobby, venho desenvolvendo e expandindo o universo. Produzi algumas HQs que apresentam outros personagens, como a Brasiliana, minha personagem mais conhecida e o estiloso Doutor do Tempo. E venho também, ao longo desse tempo, elaborando um extenso argumento, pois o Universo EB é amplo e todas as suas histórias canônicas são interconectadas em uma cronologia que já perfaz alguns séculos de aventuras.

Brasiliana na exposição Super-heróis do Brasil, iniciativa do Daniel Vardi, fundador da Publigibi.


Outros universos

Ao pesquisar o cenário de super-heróis no Brasil acabei conhecendo muita gente boa que também produz super-heróis, a maioria deles há bem mais tempo do que eu. Gente até que vem da época dos fanzines xerocopiados e acompanhou toda a evolução da tecnologia de produção de quadrinhos até chegar na distribuição por meio digital dos dias de hoje. 

E com isso vieram os crossovers, que são os encontros de personagens de universos diferentes em aventuras fora das cronologias de seus próprios universos. O primeiro foi a participação da Brasiliana na épica saga Força Extrema, idealizada pelo do amigo André Carim, criador da famosa Adriana, a Agente Laranja. Força Extrema tem como protagonistas, além da loura detetive e da minha Brasiliana, outros heróis bem conhecidos, como o Catalogador de Universos, do Lancelot Martins, Lagarto Negro, criado por Gabriel Rocha e a bela Águia Dourada, do Maurício Rosélli Augusto.

Primeira aparição da Brasiliana, ao lado de outros heróis brasileiros, no prólogo da Força Extrema, HQ escrita e desenhada por mim em 2018

Outro que também está na Força Extrema é o Blindado, criação do Rodrigo Pie e que se encontra de novo com minha Brasiliana em uma das HQs da série Encontros Heroicos, saga vivida pelo herói de aço do universo Don Comics e que proporciona encontros com heróis e heroínas de vários universos de autores nacionais. E por fim meu personagem Doutor do Tempo faz participação em uma HQ do Catalogador de Universos pelo selo HQ Quadrinhos, do grande catalogador do mundo real, Lancelott Martins.

Em meio a tantos universos paralelos, o agora quadrinista Elinaudo acabou desenhando quadrinhos até numa vaca! Em 2018 participei da Cowparade, maior evento de arte pública do mundo e que, naquele ano, aconteceu aqui em Fortaleza. Nesse projeto cada artista recebe uma escultura em formato de vaca, em branco, para fazer nela uma pintura. A custa de mais de cem horas de trabalho e várias viradas de noite no galpão de produção, pintei na minha vaca uma história em quadrinhos de um universo criado particularmente para a obra. Nesse universo fantástico que remete ao sertão do Nordeste, trava-se a luta entre a super-heroína Vaca Estrela e a vilã Seca do 15, num típico combate entre heroína e vilã, só que vacas ao invés de pessoas. E de forma metalinguística, a vaca escultura está lendo uma revista em quadrinhos onde aparece a mesma HQ que está pintada nela.

Nem só de papel e PDF vive um quadrinista!

E como eu sou apresentado...

Lá no sertão onde eu desenhava à luz de lamparina, quando alguém gosta de aparecer é chamado de apresentado, que é exatamente o meu caso! Além de adorar falar de mim mesmo (como você pode ver neste post) eu também gosto de figurar nas HQs que desenho. Lá no primeiro quadrinho da Brasiliana, se você reparar bem, sou eu tomando café bem no meio da cena. Também apareço numa história da Gata Púrpura, no prólogo da Força Extrema e até na HQ que pintei na vaca.

Na vaca e na HQ da Força Extrema.
Na vaca eu diria que faço bem mais que figuração. Sou praticamente um ator coadjuvante.
Alguém dê um Oscar pra esse homem!

E vou terminar por aqui, pois o post ficou imenso! Não pensei que fosse escrever tanto, mas à medida que fui digitando um filminho foi passando pela minha cabeça com muitas cenas e lembranças desses quase 40 anos de sonho de ser quadrinista, que nos últimos cinco venho tornando realidade. E você que teve paciência de chegar até aqui, fique certo/a que ainda vou escrever, desenhar e aparecer em muita HQ por aí!

Feliz Dia do Quadrinho Nacional pra mim e para todos os quadrinistas desse continente de talentos criativos que é o Brasil!

Elinaudo Barbosa


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